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Otelo Saraiva de Carvalho – Acusação e Absolvição – O Projeto Global e as FP-25 de Abril

19/09/2022

Estamos perante um livro da maior importância para percebermos uma questão essencial na sociedade portuguesa após o 25 de Abril, e que é ainda hoje atual: a relação da justiça, entendida como sistema judicial, e a política, enquanto exercício do poder de julgar, de impor um domínio.

O 25 de Abril derrubou um regime, mas deixou intactos, ou quase, dois pilares fundamentais do exercício do poder do Estado: a Justiça e a Diplomacia. Quanto ao sistema judicial, este manteve e mantém a matriz corporativa, regida por conceitos de ordem assente no respeito pela propriedade, em detrimento dos direitos humanos e direitos sociais. Foi esse sistema judicial que julgou Otelo.

Julgar Otelo seria sempre um julgamento político. Não podia ser de outra maneira. E seria sempre um julgamento ideológico, porque o Estado, logo o sistema judicial, tem uma ideologia subjacente. O Estado não é neutro.

Otelo foi julgado pela justiça do Estado de Direito nos termos em que ele existe e foi ilibado pelo seu corpo de leis e procedimentos. O processo judicial de Otelo e dos seus camaradas decorreu como se fossem meros criminosos de delito comum, como se fossem o bando dos Cavacos, num processo célebre nos anos 80, à margem do circunstancialismo político da época. Decorreu como se a norma de todos serem iguais perante a justiça correspondesse ao princípio de que seria justo fornecer sapatos com o mesmo número e modelo a todos os cidadãos, independentemente da função que desempenham na sociedade. A história da humanidade, do Velho Testamento à atualidade está cheia de exemplos de classificações distintas para atos apenas formalmente idênticos, da morte do Conde de Andeiro pelo rei João I, à do Duque de Bragança pelo rei João II, seu cunhado, ao massacre da família Távora pelo Marquês de Pombal. Quer isto dizer que o sistema judicial julga de acordo com o entendimento dos que exercem o poder e a narrativa que fica para a história é a dos vencedores.

Mas, mesmo sem contextualização política, o processo acusatório não conseguiu, com as suas regras, condenar Otelo. É um facto. Dir-se-á: um homicídio é sempre um homicídio e essa não é uma questão ideológica! É assim apenas para quem morre, porque o que, numa dada circunstância e num dado tempo, convinha ser tratado de uma forma, noutro contexto será apreciado sob outro ponto de vista. O homicídio, a sedição, a revolta podem ser atos políticos da maior relevância.

A política é determinada pelas circunstâncias, é por natureza oportunista e o processo contra Otelo e os seus companheiros revela-o, mesmo sem querer. A partir de determinado ponto este processo já não interessava ao poder político. Por isso as razões pelas quais Otelo foi acusado, são as mesmas pelas quais o poder político se desinteressou dele.

Otelo é uma figura carismática da Revolução dos Cravos, foi o comandante da operação militar e foi ele que introduziu o povo na revolução, que sem ele não teria passado de um putsch, de um golpe! Ele entendeu ter uma responsabilidade ética perante o povo a quem abriu a porta da liberdade e a quem incentivou a tomar o destino nas mãos através de fórmulas e instituições de poder popular.

A consciência da sua responsabilidade também corresponde ao que Otelo entendeu ser o seu dever em 25 de Novembro de 1975, o de evitar uma guerra civil, recusando o confronto para o que queriam arrastar. Otelo entendeu, como poucos o entenderam, a armadilha que se encontrava por detrás dos autores dessa ação. Ele recusou a provocação feita através das tropas paraquedistas pelo chefe de estado-maior da Força Aérea para gerar uma resposta mais violenta e retirou-se do poder, entregando o COPCON, mas não passou para o novo poder, nem organizou uma resposta violenta com elementos civis, lançou-se, isso sim, na luta política através da expressão livre da vontade dos portugueses. Apresentou-se a eleições para a presidência da República com o seu programa, impôs um discurso social e de liberdade à candidatura que reunia as forças ditas moderadas, ou realistas, isto é, adeptas do alinhamento de Portugal com o pensamento dominante.

Otelo aceita o resultado das eleições e do regime que delas emerge, de uma aliança de democratas “realistas”, unidos pela obediência aos Estados Unidos, de herdeiros mais ou menos burocratizados do antigo regime e, por fim, de um setor muito ativo e agressivo de militantes integristas, de extrema-direita, irredutíveis defensores do colonialismo e da ditadura, que se organizaram politicamente no MDLP e militarmente no ELP, mas tem a consciência clara dos perigos de revanchismo violento, para que Portugal não fosse uma inspiração revolucionária para outros povos e, principalmente, para utilizar Portugal como base de apoio a soluções neocolonialistas em Angola.

Seguem-se anos de ameaças sérias à democracia e ao Estado de Direito – leiam-se, entre outros, o livro de Miguel Carvalho «Quando Portugal Ardeu», de Gunther Wallraff «Descoberta de uma Conspiração – A Ação Spínola», «A contra-revolução no 25 de Abril: os "relatórios António Graça" sobre o ELP e Aginter Presse», de Maria Jose Tiscar Santiago e que punham em causa o regime instaurado pelo grupo dos moderados, os «nove», que passou à condição de inimigo das forças restauracionistas. Um dos intervenientes no 25 de Novembro afirmou que não estavam satisfeitos com o que conseguiram. Queriam mais! Ir mais longe. Numa entrevista ao jornalista João Paulo Guerra, um militar que esteve com Spínola em Madrid, no MDLP, confessava que o general propunha um ataque militar em força contra o regime em Portugal!

Foi perante estas ameaças reais que Otelo deu corpo a uma Organização Unitária, com capacidade armada e gizou uma manobra de defesa e de dissuasão. A ação política de Otelo e o seu apoio à organização de resposta à violência é um ato de inteligência, de coragem e de defesa da Liberdade. É este o ponto de vista pelo qual as ações de Otelo devem ser apreciadas. Não o foram. E o poder judicial, ao elidir a contextualização política da atividade de Otelo, fornece argumentos aos que, aproveitando Otelo, justificam as suas ações violentas em defesa de um regime de privilégios, de desigualdades, de afastamento dos cidadãos da vida política, típicos do que se vem designando estados iliberais.

Mas, no final dos anos 80 e nos anos 90, o sistema político português estava consolidado numa democracia liberal, a independência de Angola estava resolvida a contento dos Estados Unidos e da URSS (em processo de desagregação) e os assuntos prioritários da política portuguesa diziam respeito ao assalto das elites aos Fundos de Coesão da então CEE. A participação de Otelo na revolução portuguesa passara à história. Ele já não podia perturbar o processo político com organizações de poder popular, comissões de rua, de bairro, de cidade, cooperativas. O processo arrasta-se burocraticamente ao sabor dos interesses de uma aliança entre comunicação social e o sistema judicial, que dava os primeiros passos para a exploração sensacionalista dos casos judiciais, como a vemos hoje diariamente.

Este livro é um documento da maior importância para situarmos Otelo na História, como uma figura maior e também, infelizmente, para situar o sistema judicial como um elemento que se colocou e, tanto quanto é visível, se continua a colocar, à margem dos grandes direitos que têm por base os valores da Justiça. Em primeiro lugar o do direito à dignidade dos cidadãos.

Este livro revela a dupla face do sistema judicial, em que a acusação goza desde logo do privilégio de induzir a opinião pública no sentido da culpa de um arguido através da publicidade de um dado alvo, enquanto protege outros, ou com o manto do esquecimento, ou com o do prémio pela delação.

Esta atitude de seleção de arguidos pela conveniência política do momento parece ser comum nestes processos, foi assim com os GRAPO em Espanha e as suas ligações com o terrorismo, foi assim com o grupo Baader-Meinhof, na Alemanha, foi assim com as Brigadas Vermelhas em Itália, cujos mandantes nunca foram levados a julgamento, nunca foram sequer incomodados, nem, muito menos, investigados.

Em Portugal há os casos “esquecidos”, como os dos crimes do ELP, ou do assalto à embaixada e ao consulado de Espanha, que também não tiveram responsáveis acusados e levados a julgamento. E há os casos tomados como normais, como o do momento decisivo do processo político, o 25 de Novembro de 1975, que se inicia por um claro abuso de poder do então chefe de Estado Maior da Força Aérea, que determinou a passagem dos paraquedistas para o Exército e alterou fora das normas e de uma decisão do Conselho de Chefes de Estado Maior o dispositivo militar, transferindo os meios aéreos das suas bases para uma outra, a da Cortegaça.

São estas algumas das questões suscitadas por este livro de Mouta Liz e Romeu Francês que a Ancora teve a coragem de publicar. Num livro recente, «Não Matarás», de Teresa Martins Marques, baseado no assassinato do primeiro-ministro italiano Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, fica bem expressa a dependência política do sistema judicial italiano, idêntica ao do português. O sistema judicial não investiga de modo a chegar aos verdadeiros mandantes da violência, não manifesta interesse pelos infiltrados, e, menos ainda, expõe o móbil político ou material que esteve por detrás do crime, que deixa de o ser para passar à categoria de legítimo exercício do poder.

Em resumo, este livro pode e deve contribuir para colocar a atuação política de Otelo durante a revolução no lugar que lhe compete. Serve para compreendermos as suas opções, a racionalidade política delas, incluindo a questão central da política e do exercício do poder: dispor de força. Estamos, pois, perante um trabalho relevante para conhecermos a nossa sociedade, a nossa história e uma dos mais marcantes personalidades do passado recente. Estamos ainda, e para finalizar, perante uma obra que nos deve fazer refletir sobre a violência política numa época de radicalismos religiosos e ideológicos.

Hoje, para certos setores políticos, e logo ideológicos, o aproveitamento da figura de Otelo é uma arma para outras guerras: para atacar o Estado de Direito e o Estado Social, para denegrir as alterações democráticas e propiciadoras de maior justiça social que resultou do 25 de Abril de 1974, que limitam a lei da selva do neoliberalismo.

Os democratas europeus vão confrontar-se com situações muito complexas e perigosas, que a guerra da Ucrânia ajudou a potenciar, e devem saber distinguir o que se encontra por detrás das falsas promessas, das falsas notícias, das falsas isenções e neutralidades dos comentadores e videntes que enxameiam os órgãos de manipulação.

31 Ago 2022

Otelo Saraiva de Carvalho – Acusação e Absolvição – O Projeto Global e as FP-25 de Abril